Páginas

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Conto n.º 8 do livro de contos

Do desconserto ao concerto - de João José Santos

www.jjsantos.net

_____________________________

8. Sofrer por amor

O Paulo fazia trinta e quatro anos. Quis comemorar o aniversário com os amigos, que eram muitos e variados nas suas idiossincrasias. Já nos conhecíamos há doze anos. Enviou convites por mensagem só aos amigos mais chegados, esclarecendo depois, pelo telemóvel, aos que confirmaram a presença: — Pá... é uma coisa simples... Já combinei tudo lá no bar. São umas vinte pessoas. Juntam-se umas quatro ou cinco mesas. Encomendei ao dono do bar cinco garrafas de Vinho do Porto Tawny e um grande bolo de aniversário. Isto fica por minha conta. O que quiserem beber ou comer além disto, será pago individualmente.
O meu amigo juntou dezasseis pessoas naquele aniversário. Sentaram-se distribuindo-se por três mesas, que o dono do estabelecimento enfileirou. Foi nesse ambiente festivo que conheci o contabilista José Gomes. Estávamos à mesma mesa: eu, o Gomes, a Cátia, um casal e o aniversariante. Nenhum de nós se conhecia, à excepção do aniversariante, obviamente.
O Paulo tinha decidido partir o bolo logo no início da festa, assim que chegassem todos os que tinham confirmado a presença. Esclarecia ele:
— Pessoal, precisamos do bolo é antes, para forrar o estômago, onde o Porto vai repousar... não é depois. No fim da festa, cada qual sai à hora que entende... é uma confusão... Por isso, é melhor assim.
Cantou-se "Parabéns a você" e partiu-se o bolo. As rolhas do Porto Tawny começaram a sair.
Uma hora depois, a nossa mesa já tinha despejado uma das garrafas e estávamos a encomendar a segunda, que seria paga entre todos. O álcool produz efeitos diferentes conforme o temperamento de cada consumidor. Pois ao Gomes dava-lhe para chorar, saudoso dos amores que deixara para trás na vida. Começou por nos confessar que estava apaixonado por uma vizinha, uma mulata lindíssima, filha de angolanos, mas nascida na Damaia.
— Temo-nos visitado com frequência... — Dizia ele com um brilho de Vinho do Porto no olhar.
— Gomes, o garanhão! — Dizia um dos convivas alegremente, para se meter com ele.
— Porque não a trouxeste, Gomes!? Tiveste medo que ta roubássemos!? — Gracejou Paulo.
— Ela não podia, Paulo. É enfermeira. Hoje faz a noite no hospital. Pá, temos uma química...! As coisas estão a correr bem. Isto é paixão, é sonho, nem sei que vos diga.
Contudo, acrescentou repentinamente:
— Mas estou triste...
Intervim surpreendido:
— Ó Gomes, se estás caidinho por ela, e ela por ti... devias estar feliz... Não!?
— Não me entendes, pá! Se vocês soubessem de duas situações amorosas por que passei na vida... Sim, ainda sou jovem, mas acreditem que já sofri muito...
A Cátia, já bem alegre e divertida, incitou-o, tomando uma expressão piedosa:
— Tadinho...! Conta, Gomes! Conta... Nós enxugamos-te as lágrimas... Não te deixamos sair daqui se não contares!
O ambiente era alegre e folgazão. O Porto continuava a correr. O bolo já tinha desaparecido.
— Está bem. Mas aviso que foram duas situações que me quebraram o coração. — Revelou o Gomes adoptando uma postura séria que lhe fez de imediato duas rugas de expressão entre as sobrancelhas.
— Pobrezinho... Conta, conta... — Pedia a Cátia a morrer de curiosidade.
Então o Gomes levou aristocraticamente o balão à boca, e contou-nos a seguinte história:
«Até aos dez anos, convivi de perto com um único animal, o Tareco, o gato da minha avó. Eu e o Tareco fomos criados em casa dela.
O Tareco era um gato vulgar, cinzento malhado, como muitos gatos brigões que enchem os becos de Lisboa... como vocês sabem. Nasceu no mesmo ano que eu.
O Tareco e eu sempre tivemos, de forma implícita, um contrato de não interferência e de não agressão. Só a minha avó tratava dele. Boa comida, água limpa, serradura para as suas necessidades íntimas, enfim, nós éramos pessoas simples do povo, mas o Tareco podia-se considerar um gato de classe média. O diabo do gato era um ingrato, pois pagava o bom trato com que a minha avó o agraciava com arranhadelas constantes. As pernas da minha avó tinham sempre algum arranhão do Tareco, por vezes vários arranhões. Era assim que o brigão do gato a marcava com a sua chancela...!
Aos catorze anos, mudei de casa da minha avó para casa da minha mãe, que entretanto tinha regressado de França. Eu ainda era muito jovem, mas o Tareco, com a mesma idade, era um gato velho. Morreu nem soubemos de quê. A minha avó diagnosticou:
— Então... Zezinho... morreu de velhice... foi o que foi...
Pareceu-me que a resposta da minha avó não era menos científica do que a do médico que havia pouco tempo me tinha diagnosticado uma doença desta maneira:
— Jovem, você tem uma virose.
Velhice, virose ou outro nome... é igual. Eu adoeci e curei-me, o Tareco morreu sem adoecer.
Até aos vinte e cinco anos, não convivi de perto com outro animal, e por isso não precisei de fazer pactos de não interferência e de não agressão. A minha mãe só gostava de peixes, peixinhos de aquário. Ora, isso não é um animal. Não acham!? Um peixinho de aquário é uma massa colorida de formato fusiforme, com deslocação própria... Uma espécie de tamagotchi, de autómato... sei lá... É qualquer coisa que não mia, não ladra, não mostra ferocidade, nem nos olha com ternura. Só se desloca, come e morre. Desculpem a minha falta de sensibilidade para os animais naquele momento da minha vida, mas as pernas da minha querida avó eram o motivo à vista.
Aos vinte e cinco anos casei com a Ana. Um dia, a minha mulher levou um gatinho pequenino lá para casa. Se ela me tivesse revelado a intenção de trazer tal hóspede para nossa casa, tê-la-ia impedido com todas as minhas forças. Mas ela conhecia-me. Quando cheguei a casa, entrei na sala de jantar, e vi um gatinho siamês do tamanho de metade da minha mão. O bichano olhou para mim, deu três saltos ágeis, entrou no tubo de um novelo de croché já totalmente gasto, e ficou preso lá dentro. Pousei a pasta numa cadeira e fui libertar o siamês que se debatia, não conseguindo avançar nem recuar. Uma vez liberto, olhou para mim, e deu um grande salto que chegou às minhas coxas.
Quando a Ana chegou da cozinha, estava eu sentado no sofá, de gato ao colo.
— Ah...! Já se conhecem...! Tico, este é o Zé, o teu dono. Zé, este é o Tico, o teu gatinho de estimação.
O gatinho miou baixinho, enroscando-se confortavelmente, como um novelo, por dentro dos meus braços.
— Que hei-de dizer...!? — Exclamei resignado.
Esclareceu a Ana:
— Conhecendo a história do Tareco da tua avó, pensei que esta seria a melhor maneira de começares a estabelecer uma relação de amizade com o mundo dos felinos.
E o Tico lá ficou. Antes de eu chegar a casa, já ouvia o miar dele. Entrava, e ele miava à minha volta contando-me as novidades do dia. Onde eu me sentasse, ele estava por perto. Depois de jantar, se eu me sentasse num sofá a ver televisão, ele saltava para o meu colo. Se eu ficava no escritório a trabalhar, ele pulava para cima da secretária e ali ficava deitado, com o focinho voltado para mim, a ver-me trabalhar. Eu ia tomar duche, o Tico ficava à porta da casa de banho, como se me estivesse a guardar. Eu deitava-me, e ele deitava-se aos pés da cama.
Passaram quatro anos. A minha relação com o Tico era melhor do que aquela que criei com a Ana. Ambos sabíamos que nos tínhamos precipitado. Éramos pessoas muito diferentes. Passado o fogo da paixão, não nos suportámos mais, até que nos resolvemos pelo divórcio de comum acordo.
Entendemo-nos quanto à divisão dos bens e quanto a todos os pormenores da separação definitiva. No último dia, ela disse-me:
— Fui eu que trouxe o Tico, e ele está habituado a esta casa, por isso eu fico com ele.
— Não é justo! — Gritei eu. Ao fim e ao cabo, eu defendia algo semelhante aos direitos paternais.
Acrescentei firmemente:
— O Tico sempre gostou mais de mim do que de ti! Ele ficará melhor comigo!
— Não o levas! — Decidiu ela. — Se não queres assim, não há divórcio!
Fiquei perplexo. Não sabia o que era pior, se continuar a viver com a Ana, cuja presença eu já não suportava, ou sem o Tico. Tive que abdicar do meu querido amigo. Quatro anos de companheirismo com o gatinho siamês terminavam devido à frieza de uma esposa déspota e insensível.
Mudei de casa e fiquei só. Durante o primeiro mês chorei muitas vezes, lembrando-me com saudades de tantos momentos que passámos juntos. Refiro-me ao Tico, é claro, e só ao Tico.
Passado cerca de um ano, mudei também de emprego. Uma empresa de importações e exportações precisava de um contabilista com o meu perfil. Pagavam mais, e lá fui eu. Logo no primeiro dia de trabalho, conheci uma cliente que me deixou embasbacado. Era uma senhora mais velha que eu, com trinta e sete anos, soube eu depois. Era alta, loira, com aspecto de alemã, e tinha uns olhos verdes que faziam cintilar tudo onde pousassem. Deslocava-se como se lhe desse vento dos dois lados, ou como se procurasse equilíbrio no convés de um navio. Era empresária e usava os serviços da nossa empresa para exportar vinhos para o Brasil. Apresentámo-nos, ela deu-me algumas informações comerciais necessárias, e despedimo-nos com um aperto de mão demorado, e muitos sorrisos. Reparei que não tinha aliança. Seria possível!? Um peixão daqueles descomprometida? Era sorte a mais! Pensava eu. Devia ser comprometida mas não casada.
Correu uma semana desde aquele primeiro encontro. Um dia, pelas onze horas da manhã, passaram uma chamada telefónica para o meu gabinete. Estranhei, porque raramente recebo chamadas no trabalho. A recepcionista esclareceu:
— É a dr.ª Rute Abrunhosa, dos Vinhos Abrunhosa. Ela quer falar consigo. Falou-me de uns catálogos.
— Pode passar a chamada. Obrigado. — Respondi eu à colega.
— Sr. José Gomes, como está?
— Bem, obrigado. E a doutora?
— Muito bem, obrigada. Desculpe incomodá-lo, sr. Gomes. Já estão prontos os catálogos que devem ser enviados para o Brasil, mas não tenho quem mos leve aí. São pesados, e o moço que faz estes serviços está doente há dois dias. Vocês têm alguém que os venha cá buscar?
— Por acaso não, doutora, não temos mesmo. Lamento. É um tipo de serviço que não prestamos.
— Oh... que aborrecimento... sr. Gomes... Eu até os levava, mas não consigo transportar tanto peso. E não tenho ninguém que o possa fazer. São duas caixas grandes... cheias. E eles têm que ser entregues hoje... aí na sua empresa.
— Não se preocupe, doutora, eu mesmo irei aí buscá-los. Não está no âmbito das minhas funções, mas temos que facilitar o trabalho uns aos outros.
— Que bom, sr. Gomes! Que amabilidade a sua! Então venha, por favor, pelas dezassete horas. Dá-lhe jeito a essa hora?
— Pelas dezassete horas estarei aí.
— Obrigada! Prazer em ouvi-lo!
— De nada, doutora, é um prazer trabalhar consigo. Até logo!
Um contabilista a fazer de moço de recados. Pensava eu. Mas como lhe poderia dizer que não? Ainda me despediam por não ter facilitado a vida a um dos nossos melhores clientes. Foi melhor assim. Era esta a minha justificação profissional, mas na minha mente impunha-se aquela imagem de mulher alemã, alta, torneada, loira, de olhos glaucos.
Cheguei à empresa Vinhos Abrunhosa à hora combinada. A recepcionista, depois de me ter anunciado à gerente e proprietária da empresa, pediu-me que aguardasse um pouco ali na recepção. Aguardei apenas uns três minutos. A dr.ª Rute Abrunhosa veio pessoalmente encaminhar-me ao seu gabinete.
— Muito obrigado por tanta amabilidade, sr. José Gomes... — Dizia ela enquanto rolava as ancas à minha frente na direcção do gabinete. — Se não fosse o senhor, não sei que faria.
— Ora essa... de nada... gostamos de tratar bem os nossos clientes. — Respondi eu com o ar mais profissional que me era possível.
Entrámos no gabinete. Que decoração! Uma longa secretária do século XIX, de pernas torneadas, como a dona pensei eu, ocupava quase toda a parede do fundo, contrastando com esta, pois as paredes eram impecavelmente brancas, enquanto o mobiliário era todo de cor de cerejeira, com uns embutidos a cairem para o bordô mais escuro. Sobre a secretária impunha-se um grande candeeiro clássico, que projectava uma luz discreta sobre o tampo. A empresária sentou-se com naturalidade à secretária, numa cadeira de espaldar não muito alto, oferecendo-me o lugar na cadeira à frente dela. Sentei-me. Era uma cadeira de braços curvos e assento estofado, semelhante à dela, mas um pouco menos imponente, e deliciosamente confortável. Na parede por detrás da empresária exibiam-se os troféus ganhos pela empresa. Garrafas de vinho de formatos variados, com lindos rótulos, copos e cálices timbrados com o nome da empresa, taças, medalhas e todo o tipo de condecorações ocupavam quatro discretas prateleiras de vidro, pouco profundas, por onde se espraiava uma luz ténue, vinda de projectores ocultos abaixo do tecto, que circundavam todo o gabinete. Do meu lado esquerdo, via-se uma estante recheada de bons livros, com amplos armários da parte de baixo. Seguia-se a porta de entrada, na mesma parede. Em frente à porta, uma mesa oval com oito cadeiras mostrava que a doutora Rute fazia as reuniões da empresa no próprio gabinete. Na parede oposta à estante havia uma pequena porta e uma grande janela corrediças, que davam para um delicioso jardinzinho interior com muito verde. Três grandes vasos com arbustos de espessa folhagem completavam a decoração.
— Que lindo gabinete, doutora! — Comentei com espanto e sinceridade, oferecendo o meu sorriso mais natural.
— Obrigado, sr. Gomes. Foi todo projectado e decorado por mim.
— Tem bom gosto....! — Acrescentei sorrindo.
— Fico contente que alguém goste. O meu marido não gostava. Aliás, ele não gostava de nada do que eu fazia. Acho que nunca gostou de mim. — Dizia ela evocando as suas memórias infelizes.
— Não diga isso... — Disse eu com emoção genuína. — Não é possível que ele não goste de si.
— Obrigado, sr. Gomes. Você é um cavalheiro. — Agradeceu ela, afastando uma madeixa coquete que lhe caía no rosto. Endireitou as costas e projectou levemente os seios, num leve menear de ombros.
— Uma senhora tão fina, tão elegante... tão bonita... — Arrisquei.
— Não me faça corar, sr. Gomes... — Disse ela soltando uma gargalhada juvenil, e mexendo-se mais na cadeira. — As suas palavras, ainda mais que a sua bondade em vir buscar os catálogos, fazem-no merecedor de um lanche.
— Mas... não é necessário, doutora...
— Gosta de chá de cidreira e torradas com manteiga?
— Gosto muito. — Respondi eu.
Ela levantou o telefone, e pediu à recepcionista:
— Júlia, traga chá de cidreira e torradas para dois, por favor. O sr. Gomes vai lanchar comigo no jardim.
Júlia entrou no gabinete três vezes, preparou o lanche, saindo definitivamente. Sentámo-nos a uma mesinha de ferro forjado, pintada de branco, com tampo rendilhado coberto de vidro. As cadeirinhas a condizer.
A meio do lanche e da conversa em que a doutora me contava a displicência do marido para com ela, comentei o comportamento dele:
— Não, Rute! Realmente isso não se faz...!
— Tem razão, também acho que uma amizade não se constrói com "doutora" para aqui, e "senhor" para ali. Um simples "Rute" e "José" chegam. Não acha?
— Perfeitamente... Mas até me saíu sem pensar... — Desculpei-me.
— Que bom... Ainda bem que há coisas que se fazem sem pensarmos nelas. — E olhou-me de lado, de baixo para cima, sorrindo, ficando séria de repente, olhando-me profundamente nos olhos.
— Concordo plenamente... — Anui, correspondendo àquele olhar felino e, passando a minha mão direita levemente sobre a mão esquerda dela, comentei:
— O seu marido estava louco quando a deixou...
Ao que ela esclareceu:
— Na realidade, fui eu que o deixei.
Ela limpou os lábios ao guardanapo com delicadeza, manteve a mão esquerda sobre o tampo da mesa, sentindo o frio do vidro, e voltou a olhar para mim, desta vez rapidamente. Mas o alvo deste olhar tinha sido a minha boca. A minha mão direita aventurou-se a uma carícia sobre o ombro dela, o que a levou a olhar novamente para mim, novamente para a minha boca, desta vez demorando-se no olhar. Aproximei-me dos lábios dela, e começámo-nos a beijar com ternura, percorrendo os lábios vagarosamente, enquanto a minha mão esquerda sabia o que fazia no pescoço dela. Rute fechou os lindos olhos glaucos, e eu fechei os meus. Quando os abri, vi à entrada do jardinzinho, vindo do escritório, um grande pastor alemão, com um pêlo homogeneamente castanho, muito bem tratado.
— Está bem guardada... — Comentei rindo-me, mas atento à presença do cão.
— É o Roque! — Disse ela rindo-se também. — Está na hora de eu sair. Saio sempre às dezoito horas, e a empregada que cuida dele solta-o sempre a esta hora. — E virando-se para o cão:
— Anda cá, Roque... Lindo menino... Este é o José. O José é amigo. Dá um beijinho ao José!
Dito isto, o cão pousa as enormes patas dianteiras sobre as minhas calças e dá-me uma lambidela no queixo. Fiz-lhe festas do dorso ao lombo. Nesse momento, eu e o Roque tornámo-nos grandes amigos.
Carreguei o carro com duas caixas grandes, cheias de catálogos. Sem nada combinarmos, voltámos ao tratamento cerimonioso ao pé dos empregados dela, e despedimo-nos com um gentil aperto de mão.
Andei enrolado com a Rute durante meses. Nunca ninguém soube, nem na empresa dela, nem naquela em que eu trabalhava.
Um domingo, após uma noite em que pouco dormimos devido à insaciedade da minha ninfa loira, acordámos pelas onze e meia da manhã. Tomámos o pequeno-almoço, enrolámo-nos na cama novamente, tomámos duche, vestimo-nos e, quando me preparava para sair, disse-me ela de modo informal:
— Temos que conversar. Senta-te aqui um pouco à mesa a beber um café.
Tirou uma bica para mim e outra para ela, sentou-se e explicou-me que tínhamos que terminar a relação. Fiquei surpreendido, mas tranquilo. Dizia ela que gostava de mim, "de noite e de dia", mas que aquilo tinha que acabar. Perguntei:
— Porquê?
— O meu marido quer salvar o nosso casamento, e eu vou dar-lhe outra oportunidade. Ele ainda é sócio da empresa, se bem que minoritário, e portanto tenho razões para acertar a minha vida com ele.
Achei estranho, mas compreensível. O espaço que eu ocupava na vida dela era o mesmo que ela ocupava na minha, e chamava-se sexo. Muito e bom. Mas tudo tem um fim. Concordei, sem mais explicações nem lamentações.
Levantei-me e apertei-lhe a mão como fazíamos nas empresas. Ela correspondeu e sorrimo-nos como bons amigos. O pior estava para vir. Dei dois passos para a porta, e vi o Roque vir devagar, de cabeça baixa e cauda caída, na minha direcção. O enorme pastor alemão tinha compreendido tudo. Olhou-me com o ar mais triste que já vi no rosto de um animal. Ajoelhei-me instintivamente, abracei-me ao Roque e chorei convulsivamente, com a minha cara encostada à dele. Levantei-me, voltei a olhar para o cão, e a carinha dele era de uma tristeza infinita. Dos olhos do Roque tinham saído duas lágrimas que molhavam o seu lindo pêlo. Chorava. O meu querido amigo chorava por saber que não me voltaria a ver. Ainda consegui dizer:
— Adeus, Roque! Até sempre, meu amigo!
Saí muito triste, e até me esqueci de olhar para a Rute. Isto aconteceu há uns meses.
Neste momento, eu e a Teresa, a enfermeira mulata de que vos falei, estamos muito apaixonados. Ela tem um corpo de ébano maravilhoso, e sabe como usá-lo. Gosto daquele exotismo africano. O problema é que ela tem um lindíssimo gato Chartreux de olhos amarelos chamado Piju, e um maravilhoso cão da Serra da Estrela chamado Magnum. É aí que reside toda a minha infelicidade. Pronto... agora já conhecem a minha triste história.»
Criou-se um silêncio de alguns segundos à nossa mesa, onde estavam vazias duas garrafas de Porto Tawny. Foi o aniversariante que quebrou o silêncio:
— Então tu não gostas de animais, pá!? Estás infeliz porquê?
— Gosto sim... gosto muito... — Explicou o Gomes, chorando copiosamente, com a voz embargada e de balão de Tawny na mão.
Acalmou-se um pouco e acrescentou:
— Que vai ser de mim...!? Quando acabar tudo entre mim e a Teresa, já viram o desgosto que vou ter por me separar do Piju e do Magnum?
(FIM)

Sem comentários:

Enviar um comentário